terça-feira, 22 de maio de 2012

Transformação de princesas em guerreiras

            O dia estava lindo, um sol radiante e uma temperatura agradável convidaram-nos ao nosso segundo encontro. Meninas de cabelos soltos andavam leves pelas calçadas tortuosas rumo a um espaço harmonioso, perto da escola. Sentadas em círculo, retomamos o que foi dito na última reunião, questionamos comentários feitos, as histórias trocadas entre sorrisos e lágrimas, o que foi observado ao seu redor durante os sete dias que nos separaram do encontro anterior. Nossas histórias se transformaram porque foram retomadas, recontadas.

            Abrimos os debates após a leitura crítica do texto “A função perversa dos contos de fadas” de Regina Navarro Lins, sobre a construção simbólica de ideais ditos femininos abarcados nas histórias de contos de fadas – esses relatos de príncipes corajosos e princesas submissas que permeiam o imaginário feminino desde a mais tenra infância. Várias dúvidas surgiram após um debate caloroso, pois negociar significados é tarefa dolorosa, ninguém quer abrir mão do que valorizou toda uma vida. Nossos ideais são pérolas preciosas e é necessária muita coragem para desfazer-se das que necessitam ficar para trás.

            Impossível mensurar pedagogicamente as sementes que plantamos naquele instante, pois as vivências são múltiplas e os resultados inesperados. Mas acreditamos que o processo educativo se fez nas palavras amigas, no compartilhamento das sujeitas, na soma de suas perspectivas.

            Num processo contínuo de fazer-se, nós, as mulheres, reafirmamos ideais mais nossos, únicos e individuais. Constituimo-nos de roupagens mais maleáveis, não porque estamos à espera de um príncipe encantado messiânico, mas porque estamos ávidas por uma história própria, constituída em escolhas livres.





A função perversa dos contos de fadas
Regina Navarro Lins

Não tenho dúvidas de que os contos de fadas são prejudiciais às crianças. Mas será que pais e professores se dão conta disso? Será que percebem quais tipos de ideias estão passando para as crianças, subliminarmente, por meio desses contos? Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida. Modelos de heroínas românticas, que, ao contrário do que se poderia imaginar, no que diz respeito ao amor, ainda são parecidas com muitas mulheres de hoje. Mas isso não é à toa.

Desde a Antiguidade as mulheres detinham um saber próprio, transmitido de geração em geração: faziam partos, cultivavam ervas medicinais, curavam doentes. Na Idade Média seus conhecimentos se aprofundaram e elas se tornaram uma ameaça. Não só ao poder médico que surgia, como também do ponto de vista político, por participar das revoltas camponesas. Com a “caça as bruxas”, no século XVI, 85% dos acusados de feitiçaria eram mulheres. Milhares delas foram executadas, na maior parte das vezes queimadas vivas.

Segundo os manuais usados pelos inquisidores, é pela sexualidade que o demônio se apropria do corpo e da alma dos homens, dominando-os através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Não foi assim que Adão pecou? Como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam agentes do demônio (as feiticeiras). Rose Marie Muraro na introdução do livro "O martelo das feiticeiras", escrito por dois inquisidores em 1484, chama a atenção para um detalhe importante: “eram consideradas feiticeiras as mulheres orgásticas e ambiciosas, as que ainda não tinham a sexualidade normatizada e procuravam se impor no domínio público exclusivo aos homens”.

A partir daí podemos entender melhor como as mulheres e as personagens femininas das histórias infantis foram se tornando passivas, submissas, dóceis e assexuadas. Em "Cinderela", "Branca de Neve" e "A Bela Adormecida" existem algumas mulheres que até fazem mágicas, mas a mensagem central não é a do poder feminino, e sim da impotência da mulher. O homem, ao contrário, é poderoso. Não só dirige todo o reino, como também tem o poder mágico de despertar a heroína do sono profundo com um simples beijo.

Além da incompetência de lutar por si própria, comum às principais heroínas, Cinderela é enaltecida por ser explorada dia e noite, trabalhando sem reclamar e sem se rebelar contra as injustiças. Padece e chora em silêncio. Seu comportamento sofrido, parte do treinamento para se tornar a esposa submissa ideal, é recompensado: seu pé cabe direitinho no sapato e ela se casa com o príncipe.

No entanto, o mais grave nos contos de fadas é a ideia de que as mulheres só podem ser salvas da miséria ou melhorar de vida por meio da relação com um homem. As meninas vão aprendendo, então, a ter fantasias de salvamento, em vez de desenvolver suas próprias capacidades e talentos. As heroínas das histórias estão sempre ansiosas em fazer o máximo para agradar ao homem, ser como ele deseja, e acreditam que adequar seu corpo à expectativa dele é fundamental. Não se esqueça de que Cinderela e todas as moças do reino tentam se ajustar ao sapatinho encontrado pelo príncipe — a madrasta orienta as filhas a cortar um pedaço do pé para corresponder ao que o homem espera delas.

A historiadora americana Riane Eisler afirma que “essas histórias incutem nas mentes das meninas um roteiro feminino no qual lhes ensinam a ver seus corpos como bens de comércio para conseguirem pegar não um sujeito comum, mas um príncipe, status e riqueza. Em última análise a mensagem dos ‘inocentes’ contos de fadas, como Cinderela, é que não somente as prostitutas, mas todas as mulheres devem negociar seu corpo com homens de muitos recursos”.

Em vez de desenvolver suas próprias potencialidades e buscar relações onde haja uma troca afetiva e sexual, em nível de igualdade com o parceiro, muitas mulheres se limitam a continuar fazendo tudo para encontrar o príncipe encantado. Ao invés de desenvolver suas próprias capacidades, meninas aprendem a esperar pelo “homem salvador".

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